terça-feira, 1 de agosto de 2017

A sombra de Vici, Por Mino Carta.

 Ao tornar-se semanal, ISTOÉ, foi desassombrada na oposição à ditadura.

O poder collorido ofereceu a Domingo milhões de dólares para 
impedir a publicação da capa acima. Nunca serei a sua recura.

Capas de 1977 e 1990, esta depois da fusão com Senhor,
aquela obra de Hélio de Almeida

Publicado originalmente no site da revista Carta Capital31/07/2017.

A sombra de Vici.
Por Mino Carta.

Domingo e eu fomos grandes amigos, mas sempre lamentei que se entregasse afoitamente ao sonho de criar um império editorial

Meu eterno amigo Paulo Henrique Amorim compara com sua afiadíssima conversa Roberto Civita a Domingo Alzugaray. Conheci bem a ambos e considero a comparação inviável. Roberto era o asno pomposo na acepção irretorquível, diria mesmo clássica. Domingo, a despeito do seu passado de galã, não gostava de se exibir e amiúde exercia a autoironia.

Reconheço, apenas, que a sombra de Victor Civita perseguiu um e outro vida adentro, embora de forma diferente. A personalidade paterna literalmente aplastrou o primogênito, enquanto Domingo não pretendia imitar VC, chairman of de board, mas como ele criar um império editorial.

Paulo Henrique diz que ambos enlamearam duas publicações bem-nascidas, Roberto a Veja, Domingo a IstoÉ, o que não deixa de ser verdade, mas aquele perdeu-se pela incompetência, este pela obsessão. RC, Arci na linguagem dos Civita, reduziu a escombros a herança de Vici.

Domingo, obcecado pelo exemplo da Abril, quis a sua própria gráfica quando o instrumento começava a perder utilidade e endividou-se muito além do que a Editora Três poderia aguentar.
Domingo e eu fomos grandes amigos desde 1960, ele viera ao Brasil dois anos antes para interpretar um filme, Meus Amores no Rio. Contracenava com Susana Freyre e Jardel Filho.

Não era ser ator o seu objetivo de vida. Possuía talento para os negócios e sua primeira empresa, pequena e modesta, produzia fotonovelas para arrebatar corações. A Abril publicava três revistas mensais dispostas a acolher as obras de Domingo, a maior delas, Capricho, tinha tiragem de 700 mil exemplares, recorde brasileiro. Domingo dirigia, interpretava e escrevia o roteiro, de hábito encerrado pelo beijo do happy ending.

Fomos apresentados por meu irmão, Luis, diretor editorial da Abril, que Domingo visitava periodicamente a sobraçar uma gorda pasta abarrotada por suas produções. Ele me chamou a atenção pela boa educação, gestual elegante e fala direta, não isenta de toques de senso de humor. Illo tempore eu dirigia a Quatro Rodas.

Um ano depois, Victor Civita inaugurou em São Paulo um centro de produção de fotonovelas e contratou Domingo para dirigi-lo. Logo ele galgou outros postos de comando e em 1968, quando voltei à Abril depois do parênteses do Jornal da Tarde para dirigir a redação de Veja, Domingo se tornara diretor-comercial.

Quatro anos se escoam, Domingo e Luis deixam a Abril e fundam a Editora Três e nela o terceiro é Fabricio Fasano, que, dois anos após, se afastaria para cuidar da renovação da empresa familiar.

Deixei a Abril demissionário em fevereiro de 1976, meu irmão e o bom amigo, preocupados com meu destino de inimigo da ditadura, propõem o nascimento de uma sociedade para lançar uma revista mensal.

Reunidos na sala de Domingo convocamos os cérebros em busca de um nome convincente para a nova criatura. Em meio à célebre tempestade, Domingo extrai da gaveta um papelucho em que se lia “IstoÉ”. Explicou: “Entre muitos outros, registrei este título”.

A revista foi lançada em junho daquele ano, com a obrigação de não falar de política, a bem de sua sobrevida ao ser dirigida por um cidadão maldito. Em março de 1977, a censura havia deixado todas as publicações incluídas no índex ditatorial, e IstoÉ tornou-se gloriosamente semanal. Luis deixara a sociedade meses antes.

Dividiu suas ações entre Domingo e eu e fundou a Carta Editorial ao levar para um belo sobrado da Avenida Brasil Vogue e subprodutos. Meu irmão tinha o seu sonho, uma pequena editora muito refinada, alvo a nata da sociedade, como se dizia então, oposto àquele de Domingo. Outro grande amigo da minha vida, Karlos Rischbieter, dirigia o Banco do Brasil, e daí saiu um comedido empréstimo garantido pelas nossas casas.

Domingo cuidava da administração, eu gozava de autonomia total na redação. IstoÉ foi sucesso. Vivíamos um momento esperançoso, prometia o alvorecer de uma sociedade civil.
Nascia um novo sindicalismo a substituir os pelegos e IstoÉ publicava a primeira capa a respeito de um certo Luiz Inácio, melhor conhecido como Lula.

Raymundo Faoro comandava uma OAB de resistência e, ao completar o mandato, assumiria a presidência do Conselho Editorial.

Entendíamos que, ao encerrar-se o ciclo da ditadura, o sol da democracia brilharia para todos. De mais a mais, a sociedade com Domingo dava lucros.

Soou, porém, o dia do fracasso, e foi minha a responsabilidade. Nas asas do otimismo, convenci Domingo à publicação de um diário, o Jornal da República.

Depois de um mês de vida atribulada, o resto da mídia perfilada contra e dificuldades monumentais de impressão e distribuição, Domingo propôs: “Fechamos para salvar o bom negócio de IstoÉ”. Resisti e sem munição para tanto propus comprar a minha parte na nossa sociedade. Estupidamente impávido, assinei 24 promissórias a serem pagas algum dia.

O jornal morreu 4 meses e 20 dias após sua fundação, em janeiro de 1980. Salvou--nos uma complexa operação pela qual IstoÉ passou para as mãos de Fernando Moreira Salles, pronto a pagar uma dívida de um milhão e meio de dólares. Continuei na direção por um ano, cobrimos com desassombro as greves do ABC, concluídas com o enquadramento de Lula na dita Lei de Segurança Nacional e sua prisão no Dops paulistano.

Em fevereiro de 1981 fui despedido pelo patrão: eu era esquerdista demais e odiado pelos comandados, informava o dono da casa, conquanto todos eles se apresentassem como esquerdistas possivelmente mais esquentados. Lembro os nomes de Paulo Sérgio Pinheiro e Carlos Alberto Sardenberg, destaques da turma.

Passei a colaborar com a Senhor, a quinzenal que Domingo havia comprado da Carta Editorial, e a dirigi-la, a partir de abril de 1982, ao se tornar semanal. “Voltamos a trabalhar juntos, nas mesmas condições de antes – sentenciou o amigo –, só que desta vez você é meu empregado.” Achei justo.

Senhor foi uma revista de combate e primou por apoiar a campanha das Diretas Já e a eleição de Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo. Em meados de 1988, Domingo recomprou a IstoÉ e a fundimos com a Senhor.

A nossa relação foi perfeita até as eleições de 89, primeiras diretas depois da ditadura. Leopoldo, o mais velho dos irmãos Collor, chefiava a sucursal da Globo, além de ostentar camisas crocantes, e ali desabrochou com Domingo uma amizade perigosa. Domingo verberou que eu tivesse entrevistado Lula e evitado o papel de entrevistador de Collor.

De todo modo, IstoÉ foi muito crítica do novo governo e da Globo, capaz de manipular o debate final dos dois candidatos pela mão do próprio Roberto Marinho.

Entregue ao projeto da gráfica moderna e ao desenvolvimento de vários departamentos, Domingo quis aproximar-se diretamente do poder em detrimento da independência da revista. Alguma tensão se infiltrou entre nós. Para não ser impedido de manter o curso, escondi dele toda a manobra que descobriu a ligação entre o Planalto e a Casa da Dinda, graças ao motorista Eriberto.

Domingo me pedira para entrevistar Collor e estampá-lo na capa. Atendi ao pedido, mas na mesma edição figurava também a reportagem arrasadora que desaguaria na renúncia do presidente.

Aquela edição, tão discutível do ponto de vista jornalístico no realce dado às informações, poderia ter provocado uma desavença séria entre nós. Não se deu, por obra da extraordinária repercussão da reportagem que haveria de ter a primazia e a teve na reação provocada. A mídia em peso teve de seguir os nossos passos, mesmo a contragosto.

Ainda assim, já não éramos tão amigos, e eu dei para pensar na minha retirada. Ele passou a orientar José Carlos Bardawil, autor de uma coluna de Brasília, de sorte a citar este ou aquele figurão em proveito dos interesses da Três.

E deu para aparecer na manhã de sexta-feira para retocar textos fechados de madrugada, para favorecer personagens influentes, a serem avisados imediatamente da graça recebida. E também começou a vender espaço jornalístico a seu talante. Em agosto de 1993 me demiti.

Nem por isso fui inimigo dele e confesso ter saudade dos tempos da nossa juventude e meia-idade. Dois momentos jamais esquecerei. Primeiro, quando, ao me receber de volta, rasgou as 24 promissórias que eu assinara dois anos antes. Segundo, quando se portou com extrema dignidade como o grande empresário da comunicação que sempre desejara ser.

Este enredo vale a pena desenrolar. Bob Fernandes, na segunda metade de 1990, tocaiara pacientemente PC Farias para escrever ao cabo de três meses uma densa reportagem, a relatar aquilo que um ano e seis meses depois sairia da boca de Pedro Collor, o irmão menor e traído. Só faltava a referência aos supositórios de cocaína.

Tarde de uma sexta de outubro, IstoÉ está para fechar, a prova da capa repousa sobre a minha mesa e dela me encara PC Farias. Recebo a visita de um jornalista, companheiro na Veja do meu tempo, Mario de Almeida, até então merecedor do meu respeito.

Expressão de Buster Keaton, diz: “Esta capa de vocês é um atendado contra o Brasil”. Perguntei quem ele representava. A ministra Zélia, certa de que aquela capa não poderia ser publicada. “Será, se depender deste que lhe fala – disse eu, álgido –, mas quem manda aqui é o Domingo, quem sabe devessem oferecer-lhe ouro, incenso e mirra.

Por ora, ponha-se daqui para fora.” Até hoje não sei por que me ocorreram os reis magos. Passa-se uma hora, e Domingo surge ao meu lado e me chama para o corredor. Diz: “Estão oferecendo milhões de dólares para que a edição não saia”. Digo: “E você?” Ele responde tranquilo: “Claro que recusei”.

P.S.: Caso fossem aceitos, os milhões de dólares seriam desperdício. A mídia nativa encarava IstoÉ como atualmente CartaCapital e a reportagem de Bob não teve eco nas páginas impressas, pelos microfones e nos vídeos. Collor ainda não caíra em desgraça, embora PC Farias cobrasse pedágios de 40%. Mas o Brasil já prometia ser o país de hoje.

Texto e imagens reproduzidas do site: cartacapital.com.br/revista/963

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